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quinta-feira, 25 de setembro de 2008

ÉPOCA Debate: 20 anos da Constituição cidadã - O real significado do documento histórico promulgado em 1988 - e o que o Brasil precisa fazer (...)

20 anos de cidadania no Brasil: Como a Constituição de 1988 promoveu avanços nos direitos do cidadão – e deixou lacunas na economia

SÍMBOLOO

deputado Ulysses Guimarães e a Constituição.
Ela traz inovações nos direitos, mas ainda falta muito
para justificar o epíteto de “cidadã”
No próximo dia 5 de outubro, faz 20 anos que foi promulgada a Constituição de 1988, chamada “cidadã” pelo então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães. Pode haver algum exagero nesse epíteto. Mas hoje está claro que a Constituição de 1988 promoveu um avanço no conceito de cidadania. “Ela contribuiu para sua popularização”, diz o historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “E introduziu instrumentos legais importantes de afirmação democrática”. Ao mesmo tempo, a Constituição ficou incompleta. Até hoje, sofre um aperfeiçoamento contínuo que leva muitos a considerá-la uma “colcha de retalhos” em eterna reforma, descolada da realidade de uma economia moderna. Após 20 anos, qual é, afinal, o legado real da Constituição de 1988?
Essa é a questão central que norteia esta edição de ÉPOCA Debate. Para responder a ela, é preciso reconhecer – de modo enfático – os avanços expressos naquele documento histórico, que inaugurou a moderna democracia brasileira. Em 1988, a Constituição trouxe inovações que hoje parecem triviais. Durante mais de 150 anos, os analfabetos – maioria ou um número expressivo da população – estiveram excluídos da vida política. Pois a Constituição garantiu a eles o direito ao voto, assim como aos menores entre 16 e 18 anos. Também concedeu a todo cidadão o direito de saber todas as informações que o governo guarda sobre ele, um recurso conhecido como hábeas-data. Depois da Constituição, foram elaborados nos anos seguintes um novo Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso. O racismo passou a ser considerado crime inafiançável. Há ainda um capítulo inovador sobre meio ambiente e uma legislação sobre a questão indígena que, se não evita conflitos pontuais, pelo menos protege a minoria.
O texto da Constituição de 1988 é profícuo em tratar de direitos civis, políticos e sociais e em criar mecanismos para que eles estejam a nosso alcance. Em algumas passagens, ele chega a repetir a citação de direitos. Até sua ordem foi alterada para firmar esse ponto. “A organização do texto constitucional de 1988 traz os direitos fundamentais à frente da organização do Estado. Esse sistema é o contrário do tradicional”, diz o advogado constitucionalista Luís Roberto Barroso, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Foi uma escolha deliberada do legislador. Simbolicamente, ele diz que a Constituição elege uma prioridade: coloca a preocupação com o cidadão à frente do Estado”.
Em seu livro Cidadania no Brasil – O Longo Caminho, o historiador José Murilo de Carvalho demonstra como a noção de cidadania sempre esteve no fim da fila das questões importantes no país. Durante o período colonial e o imperial (de 1500 a 1889), os escravos nem eram considerados pessoas – quanto mais cidadãos. Mesmo os “homens bons”, a elite econômica e com direito a voto, não poderiam ser considerados cidadãos. Eles não tinham “a noção de igualdade entre todos perante a lei”, porque exerciam desmandos em suas propriedades. “A Constituição de 1988 contribuiu para a popularização do conceito de cidadania a ponto mesmo de banalizá-lo”, diz Carvalho.
Além de garantir direitos antes inéditos, a Constituição deu um passo importante ao criar caminhos para que os brasileiros os exerçam. “Ela redefiniu o escopo dos direitos e os mecanismos para garantir o alcance a esses direitos”, afirma o cientista político Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo, autor de um estudo sobre a Constituição, em parceria com o colega Cláudio Couto. “Houve uma ampliação do número de atores institucionais capazes de influenciar o jogo político”, afirma o cientista político Fernando Abrucio (leia seu artigo). “O Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal, os governos subnacionais e o Congresso Nacional, além de organizações mais amplas da sociedade civil, são atualmente peças-chave de um sistema que, historicamente, fora muito concentrado no governo federal e na Presidência da República”.
O texto constitucional prevê a possibilidade de o Congresso votar projetos de lei elaborados por iniciativa popular. Os cidadãos podem participar de conselhos responsáveis por políticas públicas. Organizações com apoio popular podem questionar a legalidade de medidas no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de ações diretas de inconstitucionalidade ou de outros instrumentos jurídicos. “O Poder Judiciário foi o mais fortalecido a partir de 1988”, diz o constitucionalista Barroso. Um efeito disso é a maior presença do Judiciário na vida cotidiana.
Nos últimos anos se tornaram comuns decisões judiciais que obrigam o governo a bancar remédios caríssimos para cidadãos que sofrem com alguma doença e não têm como pagá-los. Recentemente, o STF decidiu, após longo debate, liberar as pesquisas com células-tronco retiradas de embriões. Há um novo debate em curso no STF sobre a interrupção da gravidez quando a mãe descobre que o feto não tem cérebro. Outro caso foi o recente entendimento do Supremo sobre o nepotismo no serviço público. Provocado, o STF entendeu que a Constituição proíbe ocupantes de cargos públicos de empregar parentes em cargos de confiança. Por isso, deputados, senadores, prefeitos e governadores estão sendo obrigados a demitir seus parentes. O tema faz parte de um dos 142 dispositivos da Constituição que, após 20 anos de espera, ainda não foram regulamentados.
E é aí que a Constituição de 1988 revela suas limitações. Desde sua promulgação, ela tem sido alvo de críticas. O primeiro a bater foi o então presidente José Sarney, que afirmou que ela tornaria o país “ingovernável”. Economistas afirmavam que o governo não conseguiria cumprir as novas obrigações sociais estabelecidas no texto constitucional, pois elas custariam caro ao Estado. “É precisamente na preservação desse sistema de favores, pelo qual o Congresso finge acreditar na possibilidade de o Estado resolver todos os problemas nacionais, que está o mais sério risco para o país”, escreveu na ocasião o economista Mario Henrique Simonsen. Muitas das previsões de Simonsen e de outros economistas se concretizaram – e os defeitos da Constituição estão hoje claros (leia mais a respeito).
Eles começam no tamanho do texto. Com 245 artigos e 1.627 dispositivos, a Constituição brasileira é uma das maiores do mundo. E continua crescendo. Desde 1988, as 62 emendas feitas já a tornaram 25% maior (leia o quadro). Isso não é um defeito em si. O problema é a quantidade de temas tratados na Constituição. Ela é muito extensa porque regula atividades demais, especialmente na área econômica. Chega a ponto de determinar políticas públicas que poderiam ser deixadas para cada governo decidir. “A Constituição cobre tantos assuntos que inúmeras matérias podem virar questão judicial”, afirma o constitucionalista Barroso. Na maioria dos países, as Constituições tratam dos princípios básicos, enquanto as políticas públicas ficam a critério de cada governo. Eles apresentam seus planos e os eleitores escolhem segundo o que acreditam.

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