No dia 8 maio de 2004, oito adolescentes privados de liberdade na cela 01 do Complexo de Defesa da Cidadania, em Teresina(PI), instituição que abriga o Plantão Interinstitucional cujas finalidades encontram-se previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 88, inciso V ), tentaram simular um incêndio para uma arriscada fuga, a fim de passarem o DIA DAS MÃES em casa. Os adolescentes atearam fogo em alguns colchões para chamar a atenção dos 14 servidores (policiais e educadores) que estavam de plantão naquela noite. A iniciativa deles fracassou.
A utilização de colchões de espuma favoreceu a propagação do fogo, por tratar-se de um material com grande poder inflamável. Além disso, os extintores de incêndio existentes no Complexo de Defesa da Cidadania estavam todos com a carga vencida, ou seja, sem condições de uso. O único sobrevivente, W.J.S.S., só conseguiu escapar, com graves lesões nos braços e pernas, porque teve a idéia de recuar, ligar o chuveiro, molhar-se e usar um colchão molhado, como escudo. Os outros 7 adolescentes ficaram próximos a grade, parte mais afetada pelo fogo, gritando por "socorro" e na esperança de que os funcionários de plantão, abrissem a cela.
Através de depoimentos que constam dos autos do inquérito policial, pode-se ter uma forte visão da tragédia de 08 de maio de 2004. A descrição de cenas chocantes de adolescentes sendo assados vivos e conscientes dentro de um forno; depois, agonizando, chorando, gritando por socorro, pedindo água, e recebendo jatos de soro em seus corpos, enquanto rolavam pelo chão nos corredores do Complexo de “Defesa” da Cidadania, perdendo a pele que ficava pregada no chão.
Nessas codições, eles ainda tiveram que caminhar até as ambulâncias para serem conduzidos ao Pronto Socorro do Hospital Getúlio Vargas; com exceção de Ítalo Leonardo, considerado pelos servidores como o que se encontrava em estado gravíssimo, ao ponto de nem conseguir se levantar do colchão onde dormia, tendo que ser carregado pelo pessoal de serviço.
De acordo com os autos, as vítimas deram entrada no Pronto Socorro do Hospital Getúlio Vargas por volta das 21 horas e 15 minutos e que lá permaneceram em enfermarias coletivas sob os cuidados das enfermeiras de plantão e de um cirurgião plástico, que trataram das queimaduras que se encontravam expostas, fazendo curativos e colocando gaze, a fim de evitar a contaminação da pele que, até então, se encontrava exposta e sujeita a infecções.
Cinco adolescentes morreram logo. Um outro morreu no dia seguinte. Mais um faleceu na madrugada do dia 12.
O desespero dos adolescentes, foi marcado pela ausência dos familiares. Segundo os depoimentos de servidores do H.G.V., os jovens vitimados pediam insistentemente que avisassem suas mães, o que não foi levado em consideração, provocando-lhes pânico e impedindo a maioria de ver a família em seus últimos instantes de vida. Boa parte das mães só ficou sabendo da tragédia no dia seguinte (09/05), juntamente com a notícia da morte de seu filho, ou seja, quando foi chamada a identificar o corpo.
A Constituição Federal de 1988 (Título II, Capítulo I, Artigo 5º, Inciso LXII) estabelece que “A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Capítulo II, Artigo 107, dispõe o seguinte: “A apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada”. O caso do Complexo de Defesa da Cidadania serve como exemplo da realidade vivida pelos adolescentes pobres no que se refere ao Sistema de Garantia de Direitos.
Familiares das vítimas, em depoimentos constantes dos autos do Inquérito da Polícia Civil, afirmaram que a apreensão de alguns não foi comunicada à família, dentre eles registra-se o caso, amplamente divulgado na imprensa, do adolescente M.A.F. Segundo sua avó, Dona Neusa, em declaração publicada no Jornal “Diário do Povo”, edição do dia 15/05/04, o neto saiu para “ganhar uns trocados” olhando carros no mercado e o pessoal que o levou nem se preocupou em informar a família sobre sua prisão. Os familiares deste somente foram comunicados de que o adolescente havia sido apreendido depois que aconteceu a tragédia, ou seja, sua apreensão se deu, conforme Certidão expedida pela Delegacia de Segurança e Proteção ao Menor (10 de maio de 2004), às 9 horas e 50 minutos do dia 8 de maio e a comunicação à família se deu por volta de meia-noite, quando o jovem se encontrava no Pronto Socorro do Hospital Getúlio Vargas, entre a vida e a morte.
A mãe do adolescente identificado pelas iniciais I.L.M.A.F. (16 anos) conta que, já no Hospital onde foram atendidos, eles pediam insistentemente para que avisassem suas famílias, fato que foi ignorado. Em contato com as mães dos adolescentes P.S.R.S., O.C.A.N., W.S.O. e L.C.Q.S., constatou-se que as mesmas tomaram conhecimento da tragédia apenas no dia seguinte, juntamente com a notícia da morte de seus filhos, ou seja, quando chamadas a identificar os corpos.
O estado tenta reprimir a violência pela maneira mais fácil, isto é, matando ou trancando os infratores das regras e valores estabelecidos em estabelecimentos prisionais, apregoando que serão “re-socializados” para voltar ao convívio fora do sistema prisional.
O caso dos adolescentes vitimados no incêndio do dia 08 de maio no Complexo de Defesa da Cidadania é prova disso: enclausurados numa instituição que, ironicamente, representa a porta de entrada do sistema de garantia de direitos, cujo atendimento deveria ser ágil e eficaz, eles perderam a liberdade, foram tratados de forma desumana, permaneceram sem segurança e, sob a custódia do Estado, perderam suas vidas de forma trágica, sobrevivendo apenas um que se encontra “inválido”.
Os direitos humanos são os direitos de todos, ou seja, aqueles decorrentes da dignidade do ser humano e a Constituição Federal do Brasil, no seu Artigo 5º, define o seguinte: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, (...). Na prática, trata-se de uma letra morta, haja vista que esses direitos são constantemente violados por meio da chamada violência institucional.
Assim como os jovens queimados no Complexo de Defesa da Cidadania, em Teresina, o menino João Roberto foi vítima da violência desenfreada, praticada "em nome da lei, da ordem e da autoridade do estado". Assim como o governador do Rio de Janeiro - Sérgio Cabral, o governador do Piauí - Wellington Dias, chorou diante das câmeras, pediu perdão às famílias e à sociedade; prometeu instaurar processo administrativo-disciplinar para apurar as responsabilidades dos servidores envolvidos na tragédia. No entanto, até hoje, 4 anos e alguns meses após o episódio, nenhuma resposta foi dada às famílias das vítimas. Faço minhas as palavras do pai do garoto João Roberto: "a justiça precisa ser feita, mas não dessa forma. (...) o estado não pode matar ninguém, é pra isso que existem as leis". É preciso que num "estado democrático de direito", o direito à vida seja respeitado ao extremo e que os gestores públicos assumam suas responsabilidades pelos (des)caminhos do estado, no cumprimento da sua tarefa principal: oferecer condições dígnas e seguras de sobrevivência à população. Não é à toa que o Brasil é o 5º país onde mais morrem jovens assassinados. É preciso combater a banalização da violência, em vez de institucionalizá-la. Não se pode considerar normal mortes trágicas como essas, praticadas por agentes que, investidos de autoridade, deveriam proteger vidas em vez de tirá-las.
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