A substituição do vestibular por uma prova unificada
começa a valer já neste ano em centenas de universidades.
O novo exame é menos massacrante para os alunos,
mas continua a selecionar os melhores
Mais de 5 milhões de jovens se preparam neste ano para o vestibular, etapa crucial na vida de um estudante brasileiro. Em 2010, cerca de 1,5 milhão conseguirão ingressar numa universidade – mais gente do que nunca. A novidade é que parte desse grupo não fará o tradicional vestibular, mas será avaliada por meio de outro sistema, anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) na semana passada. Trata-se da maior mudança já feita no concurso desde 1911, quando ele surgiu no Brasil. Uma verdadeira revolução. Diga-se desde logo: se as intenções forem cumpridas, o novo sistema não prejudicará o mérito. Os melhores alunos continuarão a ser os escolhidos. Mas passarão por um teste mais enxuto e menos voltado para a memorização. Esse exame tem parentesco com o atual Enem, aplicado há uma década pelo MEC a quem conclui o ensino médio – e por isso já é chamado de "novo Enem". Outra mudança radical é que a prova será unificada. Isso significa que, com uma única nota, os alunos poderão tentar o ingresso em mais de uma faculdade. Cabe a cada universidade, seja ela pública ou particular, decidir se vai adotar o modelo ou manter o vestibular. Mas a tendência é de mudança. Um levantamento feito por VEJA com 51 dos 55 reitores das federais mostra que 48 pretendem adotar o novo modelo. Destes, 25 querem que a adoção se dê ainda em 2009. Entre as faculdades particulares, pelo menos 500 também vão aderir já. Isso é 25% do total.
A angústia de quem está às vésperas de disputar uma vaga no ensino superior é justamente saber que rumo dar aos estudos. Como muitas universidades de renome não vão abandonar o vestibular em 2009, a exemplo de Unicamp e USP, será preciso manter o plano de aprendizado atual – mas também exercitar um modelo diverso de raciocínio. A implantação do novo sistema de avaliação do MEC implica uma mudança de filosofia substancial – e, sob muitos aspectos, boa. A prova deixará de exigir dos alunos quantidades colossais de informação para priorizar o raciocínio e a capacidade de solucionar problemas em quatro áreas do conhecimento. As linhas mestras já estão dadas, como explica Reynaldo Fernandes, presidente do Inep, órgão do ministério responsável pelo exame: "A prova ficará no meio do caminho entre o excesso de informações cobradas no vestibular e o pouco conteúdo do antigo Enem. Testará mais a capacidade de solucionar problemas da vida real do que o conhecimento acumulado". Dá para entender melhor o espírito do novo Enem a partir das questões publicadas com exclusividade por VEJA nesta reportagem (veja o quadro). Feitas pelo MEC, elas são um modelo de como as matérias do ensino médio passarão a ser avaliadas.
Tradicionalmente, o que torna o momento do vestibular ainda mais difícil para os estudantes é a maratona de provas que eles são obrigados a enfrentar. Mesmo que muitas instituições preservem seus concursos, a situação ficará, sem dúvida, melhor com o novo exame unificado. É algo que tem impacto direto na vida de estudantes como Priscila Kondo, 19 anos, que em 2008 fez nada menos que dezessete provas em cinco universidades. Juntas, elas consumiram 67 horas, número que Priscila não esquece. "Eu estava em frangalhos. Foi desgastante", diz ela, que, embora tenha sido aprovada em dois dos concursos, preferiu estudar mais e tentar, outra vez, entrar na faculdade de medicina da USP. Além de minimizar esse sufoco, o sistema unificado pode trazer outro benefício para os estudantes. Quem quiser terá a chance de pleitear vagas em mais estados, sem que precise cruzar o país para fazer uma prova. Com um sistema pulverizado, como é hoje o do vestibular, os estudantes brasileiros praticamente não cogitam estudar numa faculdade longe do estado em que moram. Para efeito de comparação, nos Estados Unidos essa é a opção de 20% dos jovens. No Brasil, ela não passa de 0,04%.
Esse ganho de mobilidade dos estudantes também interessa às universidades. Hoje, pouquíssimas instituições, como Unicamp e ITA, têm vestibulares espalhados por várias cidades do país. O investimento delas atende a um propósito claro: poder escolher em meio a um universo maior de estudantes, o que aumenta as chances de essas instituições conseguirem atrair um número maior de ótimos alunos. Com o sistema unificado, é bem possível que os melhores estudantes de todas as partes do país passem a procurar as universidades de maior excelência. Essas, certamente, vão se beneficiar disso – e vice-versa. "O ensino é sempre melhor onde estão os bons alunos", diz a antropóloga Eunice Durham. Ela e outros especialistas compartilham o temor de que as faculdades menos prestigiadas, encravadas em áreas mais pobres, fiquem, por sua vez, apenas com os piores estudantes. Há probabilidade de isso acontecer, mas o efeito, a longo prazo, não será necessariamente ruim. "É um incentivo para que as universidades mais fracas melhorem", diz o especialista Gustavo Ioschpe. Pode ser bom para o ensino.
O vestibular não é exatamente um exame ruim. Os grandes concursos das melhores universidades do país se prestam bem à sua finalidade básica, de colocar na sala de aula os alunos mais aptos. Os cinco campeões em vestibulares de diferentes épocas que ilustram esta reportagem eram também os melhores estudantes na escola. Ao longo dos anos, as provas foram aprimoradas e algumas delas, como a da Unicamp, são exemplos de avaliação benfeita. Mas, para responder à maioria dos exames, requer-se ainda boa dose de decoreba, o que não é bom. Outro problema essencial é a quantidade de conteúdo cobrado, o que exige dos alunos o domínio de um número infindável de detalhes sobre as mais diferentes áreas. Poucos processos seletivos no mundo demandam dos jovens conhecimento sobre tanta matéria. Só na área de ciências, o vestibular cobra um currículo de setenta itens. Para se preparar para uma prova de química do vestibular, por exemplo, é preciso saber sobre vinte subáreas, lista que inclui atomística, propriedades coligativas, cinética, termoquímica e isomeria. Diz o professor Elcio Bertolla, que dá aula dessa disciplina no Colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo: "É um verdadeiro massacre. Só quem vai seguir a carreira de químico precisa saber tanto".
O excesso de matérias exigidas no vestibular tem um efeito desastroso sobre as escolas brasileiras. Para tentarem contemplar tudo o que cai no exame, elas produzem currículos gigantescos, baseadas na ideia de quanto maior, melhor. Em poucas escolas de ensino médio do mundo se ensina tanta física, química, biologia, matemática. Noutros países, a grade de matérias é bem mais diversificada e flexível. Pode soar como uma vantagem brasileira, mas é exatamente o oposto. Primeiro, por uma impossibilidade prática. "A pretensão de ensinar tudo em tão pouco tempo resulta num ensino superficial, em que não se aprende é nada", diz o consultor Roberto Lobo, ex-reitor da USP. As provas internacionais que comparam o Brasil a outros países reforçam essa ideia. Os brasileiros estão sempre atrás. O segundo problema em incluir tantos assuntos no currículo é mais conceitual. O saber enciclopédico perdeu um pouco do sentido numa sociedade moderna em que informações são facilmente acessadas na internet e se transformam a uma velocidade avassaladora, conforme a ciência avança. "Mais importante que estocar conhecimento é, sem dúvida, saber ordenar tantas informações disponíveis e chegar a uma conclusão", afirma o alemão Andreas Schleicher, que comanda o Pisa, prova internacional que compara o desempenho dos estudantes em sala de aula e que também serviu de inspiração para o novo Enem.
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