Enquanto a terra for colocada
como briga entre direita e esquerda,
quem perderá serão os já
destituídos
Antes que os
desabamentos no Rio de Janeiro joguem uma cortina de fumaça na cena mais
degradante que vi nos últimos tempos no Brasil – o despejo forçado de milhares
de trabalhadores no Pinheirinho, em São Paulo, no dia sagrado de descanso das
famílias –, vou falar de desumanidade, egoísmo, cinismo. É pouco? Então vou
falar também da violação de nossa Constituição. Que garante o direito à moradia
adequada.
O
que menos interessa é o jogo de empurra que se seguiu. O Legislativo empurra
para o Judiciário e o Executivo, e vice-versa. Um partido empurra para o
partido adversário. E vice-versa.
Enquanto
a terra rural e urbana for colocada no Brasil como briga entre direita e
esquerda, enquanto o deficit de 5,5 milhões de casas populares for
jogado na conta do PSDB ou do PT, quem perderá serão os já destituídos. E a
sexta economia do mundo continuará a exportar cenas subdesenvolvidas. Políticos
intransigentes e sem visão existem no mundo todo. Mas o que se viu no dia 22 de
janeiro de 2012 é proibido em países civilizados.
Dois
mil policiais, com dois helicópteros, 220 viaturas, 40 cães e 100 cavalos,
chegaram ao Pinheirinho quando a comunidade mal acordara, às 6 horas da manhã
do domingo. Na casa do eletricista João Carlos Garrido, de 58 anos, “eles
entraram falando ‘levanta, vagabundo’ e com um porrete de borracha bateram na
minha perna enquanto eu estava dormindo, não me deixaram pegar nada, nem a
féria da semana no meu bar”.
Eu
me pergunto como as autoridades, pela falta de um cadáver, podem comemorar e
“investigar se houve excessos”. A imprensa não foi autorizada a acompanhar a
ação, o que é mais um direito violado. Os vídeos em tempo real não foram feitos
por jornalistas.
Eram
1.600 famílias, 5 mil moradores numa comunidade com rua, igreja, boteco, praça,
quitanda, casa de alvenaria, geladeira, fogão, televisão. E que foram tratados
como delinquentes, afugentados por gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de
borracha.
Não
sei se eu fugiria ou reagiria. Provavelmente, com filhos, fugiria. Não se
brinca com a truculenta PM do Estado de São Paulo. Famílias foram para igrejas
e abrigos da prefeitura. Na quarta-feira, 500 desterrados caminharam uma hora
por 4 quilômetros, com crianças, idosos, cachorros e alguns pertences. Eles
tinham sido obrigados a sair da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Na
chegada ao abrigo municipal, com telha de zinco e muito calor, uma grávida de
três meses desmaiou. Não havia água nos banheiros. A Defensoria Pública abriu
ação contra a prefeitura pedindo a retirada das famílias por falta de
condições. Como o Estado vai garantir a escola, a saúde e o emprego de uma
comunidade dispersada à força e sem teto?
O
governo de Geraldo Alckmin em São Paulo e a prefeitura de Eduardo Cury, de São
José dos Campos, ambos do PSDB, terão de conviver, em pesadelos, com sua
responsabilidade sobre o drama dos retirantes do Pinheirinho, despejados de
casas que habitavam havia oito anos.
O Judiciário estadual de
São Paulo também poderá refletir sobre a “reintegração de posse”. A juíza
ignorou duas premissas. A primeira é que a propriedade não pode ser definida
apenas por seu valor econômico, mas também por sua função social. Quem diz isso
não sou eu, é a Constituição. Os despejados não tinham nenhuma alternativa de
teto. A juíza os colocou no olho da rua. A segunda premissa eram as
negociações, ainda em curso. A atitude mais sensata seria perguntar ao
prefeito, ao governador, à presidente se tinham sido esgotadas todas as opções.
É
uma novela de fracassos. A ocupação irregular começou em 2004. Foi permitida
pelas autoridades. Não era área de risco. O terreno de 1 milhão de metros
quadrados e R$ 180 milhões pertence ao megaespeculador Nagi Nahas, que deve à
prefeitura R$ 16 milhões. Tanto em 2005 quanto agora, em janeiro, o Ministério
das Cidades ofereceu recursos para São José dos Campos tornar o terreno
público, urbanizar e regularizar a situação dos moradores. A oferta foi
ignorada pela prefeitura.
A
relatora da ONU Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, solicitou o fim imediato
do cerco policial do Pinheirinho e a retomada de negociações para reassentar as
famílias. “Se o Brasil quer virar gente grande, não pode só virar rico, precisa
voltar à civilização e dispensar tratamento digno a todos os cidadãos”, diz
Raquel.
Todos
cumpriam ordens no Pinheirinho. Lavam as mãos, como numa guerra. Agora,
prometem cadastrar “os desabrigados”, ampliar as moradias populares em São José
dos Campos, incluir as famílias no Minha Casa Minha Vida. Isso deveria ter sido
feito antes.
Sob
os escombros do Pinheirinho, pode não haver corpos, mas havia vidas. Era essa
“a solução final” que o Estado brasileiro buscava?
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