Estou longe, em Londres. A noite dos desesperados de Santa Maria provocou em mim um sufocamento típico das testemunhas impotentes de um massacre estúpido.
Não foi um avião que caiu, não foi um maluco que saiu atirando, não foi uma tormenta que destruiu casas, não foi uma bomba terrorista que explodiu. Foi um conjunto de omissões e incompetências primárias, de Quinto Mundo. Segundos ou minutos bastaram para asfixiar, queimar, envenenar e matar 200 e tantos jovens num espaço de lazer. Eles eram ou poderiam ser nossos filhos. Saíram para dançar, voltaram num caixão. Irmãos, namorados, amigos.
Há uma faixa preta no braço de cada brasileiro. Há uma torcida emocionada pelos pais e mães que se internaram em quartos de hospital para acompanhar o drama dos filhos em UTIs.
Nosso luto é pela estupidez humana que transformou uma boate numa câmara de gás sem chance de salvação para centenas de rapazes e moças. O assassinato coletivo na boate Kiss ficará na história como uma das tragédias que poderiam ser evitadas se houvesse uma coisa apenas: responsabilidade. Faltou responsabilidade. Do prefeito. Dos donos da boate. Do Corpo de Bombeiros. Dos músicos. Dos seguranças.
Santa Maria, rogai por nós, pecadores do Rio de Janeiro, de São Paulo e de todas as capitais e cidades do Brasil. Em qualquer canto deste país, há armadilhas engatilhadas contra a vida. Boates e casas noturnas estão com alvará vencido, superlotam, não têm suficientes saídas de emergência nem sinalização, os extintores são poucos, velhos, falsos ou não funcionam, as janelas dos banheiros estão lacradas, os músicos usam substâncias proibidas e baratinhas, o isolamento acústico é inflamável, os seguranças são treinados para intimidar, e não para salvar, os bombeiros demoram e não têm equipamento adequado.
Se uma boate em chamas precisa ser esvaziada em quatro minutos, um minuto de fechamento da única porta de saída para evitar “calote” equivale a um crime escabroso. Como dizia Einstein: “Só duas coisas são infinitas, o Universo e a estupidez humana, mas não estou seguro sobre o primeiro”. O país assiste agora, envergonhado, a um jogo de empurra sem vencedores. Ninguém assume nem responsabilidade parcial.
As leis existem. Mas, por corrupção, ganância, descaso, ignorância e, principalmente, por falta de fiscalização e punição, crianças caem de rodas-gigantes defeituosas, grupos afundam em barcos superlotados, moradores de prédios antigos são soterrados, bujões, fogos de artifício e bueiros explodem. Ninguém vai preso, a culpa se dilui e a mídia esquece. Até a próxima “fatalidade anunciada”.
Em alguns países, como a Inglaterra, onde vivi sete anos, o risco é muito mais controlado. Sim, houve o Grande Incêndio de 1666, parte do centro de Londres foi dizimada em quatro dias de fogo, as casas são antigas com muita madeira – a História explica a obsessão contra o fogo. Mas é bem mais que isso. No DNA dos ingleses, existe a cultura da prevenção. Transmitida de geração a geração.
Pubs pequenos têm diversas saídas de emergência e vários extintores, os letreiros de Fire Exit são enormes e luminosos, o staff é treinado. Há ensaios frequentes e sem aviso prévio em estabelecimentos públicos e prédios particulares, chamados fire drills. Alarmes soam. As simulações ensinam a salvar nossa vida e a dos outros, com risco calculado. O país não quer celebrar heróis anônimos mortos em incêndios.
O correspondente da Globo News em Londres, Sílio Boccanera, esteve na British American Tobacco Company para uma palestra internacional. Um dos diretores abriu assim o encontro: “Bem-vindos. Algumas regras. Se tocar o alarme de incêndio, levem a sério, porque não há ensaio programado para hoje. E é proibido fumar”.
Sílio quis instalar uma tomada em seu banheiro. O eletricista se negou: “A Inglaterra proíbe tomada em banheiros. É muito risco”. Todas as tomadas precisam ser aparentes, nenhuma abafada. Qualquer apartamento alugado tem de ser vistoriado anualmente por técnicos de gás e eletricidade. Por lei, o responsável é sempre o proprietário. As multas por violar as Fire Regulations variam de 5 mil libras (R$ 17 mil) a dois anos de prisão. Sem ferir ou matar.
A obsessão com segurança se revela em muitos aspectos da vida na Inglaterra. Ninguém senta em corredores de teatros. Em dia de chuva, o funcionário do metrô pede por alto-falante que todos andem com cautela na plataforma subterrânea. Motorista que se aproxima demais de um ciclista ou um pedestre é reprovado no exame de habilitação. Só se atravessa rua na faixa.
Essas histórias mostram nossa única saída. A responsabilidade, pública e individual, com o espaço comum e com a vida de todos.
Fonte: revistaepoca.globo.com
Fonte: revistaepoca.globo.com
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