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quinta-feira, 8 de maio de 2008

Quatro anos da "Tragédia do Complexo da Cidadania" em Teresina-PI

A morte dos queimados
Aproximadamente às vinte horas do dia 08 de maio de 2004 (sábado), aqui, em Teresina, Capital do Estado do Piauí, 08 adolescentes – a quem se atribuiu autoria de atos infracionais – privados de liberdade na cela 01 do Complexo de Defesa da Cidadania, instituição que abriga o Plantão Interinstitucional, destinado a cumprir as finalidades previstas no ECA (artigo 88, inciso V ), tentaram simular um incêndio para uma arriscada fuga, a fim de passarem "O DIA DAS MÃES" em casa.
Os adolescentes tiveram a idéia de tocar fogo em alguns colchões para chamar a atenção dos 14 servidores de plantão naquela noite no Complexo de “Defesa da Cidadania" e provocar uma fuga. A iniciativa fracassou. Para o azar deles, os colchões utilizados eram de espuma, material de grande poder inflamável. Além disso, os extintores de incêndio existentes naquele prédio estavam com o prazo de validade vencido, sem a menor condição de serem utilizados.
O único sobrevivente da tragédia, W.J.S.S., só conseguiu escapar, com graves lesões nos braços e pernas, porque teve a iniciativa de recuar, molhar-se e proteger-se com um colchão molhado. Os outros 07 adolescentes ficaram próximos à grade, parte mais afetada pelo fogo, gritando por socorro e aguardando que a abrissem a cela.
Nas paredes do banheiro, foram registrados vários escritos produzidos por atrito de sabonete de cor azul onde se liam nomes, apelidos e algumas frases, tendo chamado a atenção dos Técnicos da Perícia, as transcritas a seguir:
“NÃO VOU SORRIR SEM MOTIVO SERIA FALSO NÃO VOU CHORAR PORQUE NÃO TEM LÁGRIMA PRA TANTA DESGRAÇA. TIAU!”
A agonia das vítimas
Através dos depoimentos que constam dos autos do inquérito, podemos ter uma forte visão da tragédia do 08 de maio. A descrição de cenas deprimentes de oito adolescentes sendo assados vivos e conscientes dentro de um forno, depois, agonizando, chorando, gritando por socorro, pedindo água, e recebendo jatos de soro em seus corpos, enquanto rolavam pelo chão nos corredores do Complexo de “Defesa” da Cidadania, perdendo a pele que ficava pregada no chão.
Nessas condições deprimentes, eles ainda caminharam para as ambulâncias que os conduziram ao Pronto Socorro do Hospital Getúlio Vargas; com exceção de Ítalo Leonardo, considerado pelos servidores como o que se encontrava em estado gravíssimo, ao ponto de nem conseguir se levantar do colchão onde dormia, tendo que ser carregado pelo pessoal de serviço.
Consta dos autos que os oito adolescentes, bastante assados e completamente deformados, deram entrada no Hospital Getúlio Vargas por volta das 21 horas e 15 minutos, apesar de registrar que o início do incêndio aconteceu por volta das 20 horas.
Apesar do estado grave dos jovens, foram internados em enfermarias coletivas do HGV, sendo acompanhados por enfermeiras e um cirurgião plástico de plantão. Cinco adolescentes morreram logo. Um outro morreu no dia seguinte, Ítalo Leonardo. Na madrugada do dia 12 de maio, morreu a sétima vítima, Mikhayl de Almeida Freitas. Apenas um adolescente conseguiu sobreviver: WJSS. Segundo documentos constantes dos autos, ele se encontra incapacitado para o trabalho, ou seja, inválido.
Pânico
O desespero dos adolescentes foi marcado pela ausência dos familiares. Conforme depoimentos de alguns servidores do Hospital Getúlio Vargas, os jovens pediam insistentemente para que avisassem às suas mães, o que não foi levado em consideração, provocando-lhes pânico e impedindo à maioria deles de ver a família em seus últimos instantes de vida. A maioria das mães só tomou conhecimento da tragédia no dia seguinte (domingo - dia das mães), juntamente com a notícia da morte de seu filho, ou seja, quando foi chamada para identificar o corpo.
Os Inquéritos Policiais
Polícia Civil
O inquérito aberto pela Polícia Civil para apurar a tragédia do 08 de maio no Complexo de Defesa da Cidadania, que vitimou os adolescentes WANDERSON SILVA OLIVEIRA, PAULO SÉRGIO RIBEIRO DE SOUSA, W.J.S.S., ALEXSANDRO COSTA BATISTA DA CONCEIÇÃO DE ARAÚJO, ÍTALO LEONARDO MADEIRA DO AMARAL, OTÁVIO CARDOSO DE ARAÚJO NETO, LINDOMAR CASTILHO QUEIROZ E MIKHAYL DE ALMEIDA FREITAS, foi concluído em 28 de julho de 2004 e indiciou como responsáveis mediatas pela tragédia a Ex-Secretária Estadual de Assistência Social e da Cidadania, ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO SOUSA; a Ex-Coordenadora do Complexo, MARIA VERÔNICA BATISTA XAVIER DE LIMA; a Ex-Delegada da Criança e do Adolescente, MARIA ELIENE CLARK; como responsáveis imediatos, a mãe de um dos adolescentes mortos na tragédia, Sra. FRANCISCA DE ASSIS SILVA OLIVEIRA e o soldado de Polícia ANTÔNIO SOARES DO NASCIMENTO. O crime tipificado foi homicídio culposo (não intencional).
Denúncias de irregularidades
O trabalho investigativo realizado pela Comissão de Inquérito, presidida pela Delegada MARIA DAS GRAÇAS BARROS DE MOURA, foi objeto de denúncias formalizadas pelas famílias das vítimas junto aos Ministérios Públicos Estadual e Federal, bem como ao Governo do Estado que preferiram ignorá-las.
Conclusão do Inquérito da Polícia Civil
Composto de três volumes que totalizam 743 páginas, o Inquérito Policial, após passar pelas mãos do Juiz da Segunda Vara da Infância e Juventude e foi encaminhado, em 10 de agosto/2004, ao Procurador Geral de Justiça do Estado, Dr. Antônio Ivan e Silva, a fim de que fosse designado um Promotor Público para apresentar ou não denúncia contra as pessoas indiciadas.
Somente no dia 20 de outubro/2004, o então Procurador Geral do Estado manifestou-se através de um parecer ministerial, inocentando Rosângela Sousa, Ex-Secretária Estadual de Assistência Social e Cidadania e declarando a incompetência do Ministério Público Superior para apreciar a responsabilidade penal dos demais indiciados.
Polícia Federal
Com relação ao Inquérito instaurado pela Polícia Federal, composto por mais quatro volumes, além dos três da Polícia Civil, foi concluído no início de dezembro/2004 e baseado nele o Procurador Geral da República, Dr. Tranvanvan Feitosa, emitiu em 07/12/2004 um parecer, transcrito a seguir, responsabilizando o Estado por OMISSÃO e NEGLIGÊNCIA, porém declinando de competência para adotar as providências cabíveis.
Veja a transcrição de algumas partes do Relatório Final dos dois Inquéritos Policiais:
Dos Indiciamentos À vista das provas colhidas nos autos e, ante a robustez dos indícios constantes deste inquérito policial e demais elementos de investigação até aqui coligidos, nomeadamente provas testemunhais, materiais, periciais e médico-legais, verificam-se elementos de convicção suficientes ao indiciamento da Sra. FRANCISCA DE ASSIS SILVA OLIVEIRA, mãe do adolescente Wanderson, em observância ao art. 29 c/c art. 121, § 3° do Código Penal, haja vista ter sido a mesma que levou, às escondidas, os meios com os quais o adolescente Otávio cometeu a prática delituosa, isso por saber que a entrada dos mesmos não era permitida, em virtude da prática costumeira dos adolescentes de atearem fogo aos colchões em situações de rebelião e tentativa de evasão. Indicia-se ainda o Policial Militar ANTÓNIO SOARES DO NASCIMENTO, em observância ao art. 13, § 2°, "b" c/c art. 121, § 3° do Código Penal, considerando ter sido de sua responsabilidade a vistoria realizada na mãe do adolescente quando de sua chegada, bem como no adolescente quando do término da visita, o que não se deu, ante a sua conduta omissiva, não justificável em local com históricos de incêndios pretéritos. Outrossim, informamos que apesar do Oficio da lavra do Comandante Geral da PMPI às fls///, noticiando ser atribuição legal da Polícia Militar, nos estabelecimentos penais, apenas a guarda externa desses órgãos, conforme art. 2°, item 27, do Decreto Federal n° 88.77, consta dos autos, fls////, as normas internas da Ação Social Especializada, onde se infere que a Policia Militar é parte integrante da ASE - Ação Social Especializada e como tal responsável pelas vistorias necessárias. Assevera-se que este era um trabalho realizado costumeiramente por Policiais Militares, sendo eles inclusive que conduziam os menores até o local das visitas, permaneciam durante estas e os levavam de volta até o alojamento, quando do seu término. Ainda como parte da responsabilidade imediata no incidente, temos a participação do adolescente Otávio, que já havia sido detido pela prática de incêndio criminoso na Casa de Punaré, entidade onde se encontrava anteriormente recolhido sendo incontesti sua participação como autor do incêndio verificado no Alojamento onde se encontrava recolhido, sendo, portanto o causador imediato do seu próprio óbito, bem como os dos demais companheiros de alojamento vitimizados fatalmente e das lesões provocadas no adolescente sobrevivente. No que se refere à responsabilização mediata dos danos oriundos do incêndio, temos em primeiro momento que o Complexo era coordenado pela Sra. MARIA VERÓNICA BATISTA XAVIER DE LIMA, que, na qualidade de Coordenadora, competia-lhe adotar e exigir de quem de direito a efetivação de todos os procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como aqueles de segurança pertinentes ao local, tendo em vista que o Complexo, em datas pretéritas, já havia registrado diversas ocorrências como incêndios, tentativa de fugas e evasão e etc., verificando-se, no entanto, que tais procedimentos não foram adotados ou não foram adotados a contento, conforme se percebe do resultado pericial e das e das declarações anexas, onde se constatou extintores sem carga, mangueiras furadas, inadequação das instalações hidráulicas, dependências precárias e superlotadas. Ressaltando-se que o retardo no combate ao incêndio deveu-se à ineficiência dos equipamentos de extintores presentes no local, bem como a maneira improvisada que o mesmo, conforme laudo pericial, comprometeu o socorro imediato às vítimas, motivo pelo qual indicia-se a então Coordenadora com fulcro no art. 13, § 2°, "a" c/c art. 121, § 3° do Código Penal. Carream-se ainda aos autos farta documentação da lavra do Exmo. Sr. Juiz de Direito da 2a Vara da Infância e Juventude, fls. 374 a 408, solicitando a Dra. ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO SOUSA, Secretária de Estado da Assistência Social e Cidadania, as devidas providências para que o local oferecesse condições de salubridade e segurança, assim como atendesse aos princípios esculpidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive com notificação para cumprimento integral em 48 hs, das determinações judiciais, alertando-a que seu descumprimento configuraria violação dos direitos dos adolescentes e desobediência a ordem judicial. A omissão das providências solicitadas, configurou, An casu, uma das circunstâncias determinantes para a efetivação da tragédia, uma vez que o local desprovia-se de condições mínimas de segurança, o que comprometeu seriamente o socorro às vitimas. Por este motivo, as autoridades policiais designadas indiciam a Secretária de Estado da Assistência Social e Cidadania, com base no art. 13, § 2°, "a" c/c art. 121, §3° do Código Penal. Com relação à responsabilização da Delegada Titular da Delegacia de Segurança à Criança e ao Adolescente, MARIA ELIENE CLARK, esta se prende ao fato de que não foram formalizadas as comunicações ao MM. Juiz da 2a Vara da Infância e da Juventude referentes às apreensões dos adolescentes OTÁVIO CARDOSO DE ARAÚJO NETO, que havia sido apreendido no dia 04/05/2004, acusado da pratica de depredação do patrimônio público, por ter participado de incêndio na Casa de Punaré, e LINDOMAR CASTILHO QUEIROZ DOS SANTOS, que havia sido apreendido no dia 07/05/2004, às 15:25 h, sob a acusação de furto. Desta forma, indicia-se a Delegada Titular da DSPM com base no art. 231 do Estatuto da Criança e do Adolescente. No que se refere aos educadores e demais policiais militares e civis, que se encontravam de plantão do dia e hora do incêndio, as evidências contidas nos autos indicam não ter havido negligência ou omissão de socorro por parte destes, uma vez que empreenderam todos os esforços no sentido de conter o incêndio e socorrer as vítimas, não havendo motivos para o indiciamento dos mesmos. Outrossim, sugere-se que seja feita a reconstítuição dos fatos, o que não pode ser feito na fase policial, ante a informação dos peritos de que para o êxito de tal procedimento necessário seria que o adolescente sobrevivente participasse da reconstituição, o que até o término desse inquérito demonstrava-se, inviável, haja vista seu quadro clinico. Contudo, como o mesmo encontra-se em franco estado de recuperação, tal procedimento poderá, caso assim entenda o Julgador, ser realizado a posteriori.
É o Relatório
Pelo exposto, provada a materialidade do(s) delito(s), determinadas as circunstâncias em que ocorreu e os meios empregados, bem como individualizada a autoria, encerrados estão os trabalhos da Polícia Judiciária. Conclusos, determino ao competente escrivão do feito judicial, após as formalidades legais, sejam os autos encaminhados à Justiça Criminal, através da Corregedoria Geral de Polícia Civil, via DPJ, conforme dispõe a lei.
___________________________________ DO PARECER DO PROCURADOR GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
O parecer do Dr. António Ivan e Silva, pede o arquivamento do Inquérito no que diz respeito ao indiciamento da Dra. Rosângela Maria Sobrinho Sousa, Secretária de Estado de Assistência Social e Cidadania, e manda que seja distribuído a uma das Varas Criminais para que se dê prosseguimento quanto aos demais indiciados. De acordo com o parecer do Procurador:
DO INDICIAMENTO
A Dra. ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO foi indiciada com base no Art. 13, "a" c/c Art. 121, § 3°, ambos do CP, pois a mesma teria se omitido em providenciar as condições mínimas de segurança ao COMPLEXO DE DEFESA DA CIDADANIA o que dificultou o socorro às vítimas, caracterizando-se com concausa do resultado fatídico.
DO DIREITO Primeiramente é de se observar que à indiciada ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO foi atribuída a prática de homicídio culposo (Art. 121, § 3°).
Do demonstrado no IP, verifica-se que o autor imediato dos delitos praticados foi o menor OTÁVIO CARDOSO DE ARAÚJO NETO o qual ateou fogo nos colchões e causou o malsinado incêndio de forma culposa.
O Procurador Geral de Justiça prossegue argumentando que:"na doutrina e na jurisprudência o crime culposo não admite participação, mas tão-somente co-autoria", afastando, portanto a possibilidade de enquadramento da referida indiciada na qualidade de partícipe do delito. Passando então a analisar se a mesma “exerceu co-autoria do fato típico”, acrescentando que: "para caracterização da conduta culposa é necessária a concorrência dos requisitos: conduta, inobservância do dever de cuidado, resultado lesivo involuntário, previsibilidade e tipícidade."
Dos cinco requisitos acima mencionados, de acordo com o parecer do Dr. António Ivan, "é possível averiguar que houve realmente o concurso" de quatro deles, no entanto, "não conseguimos vislumbrar o requisito da 'previsibilidade' do ocorrido no caso concreto."

Ele prossegue dizendo que:

De fato, não é esperado ou pelo menos previsível que menores confinados vão ter acesso a fósforos e resolvam incendiar os próprios colchões no único local de saída do alojamento.
Acrescente-se, ainda, que a falta de estrutura não pode ser atribuída tão somente à indiciada ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO, enquanto Secretária de Assistência Social e Cidadania, pois para tal circunstância concorreram todos aqueles que a antecederam. O Procurador Geral Antônio Ivan e Silva conclui afirmando: Uma vez afastada a responsabilidade criminal da Dra. ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO, única indiciada com prerrogativa de foro, falece a este Ministério Público Superior e a esta E. Corte competência para apreciar a responsabilidade penal dos demais indiciados sob pena de supressão, respectivamente, atribuição e instância. Ex Positis, e com fundamento no que demais consta nos autos, o Ministério Público Superior, é de parecer pelo(a):
a) arquivamento do presente Inquérito Policial quanto à indiciada ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO; b) remessa dos autos à Justiça de 1a instância, para que inquérito seja distribuído a uma da Vara Criminais e prossiga quanto aos demais indiciados.
___________________________________
DO PARECER DO PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA Proc. 2004.3724-0 Classe 15600-Inquéritos Policiais 1a Vara da Justiça Federal MM. JUIZ FEDERAL,
No dia oito de maio deste ano ocorreu a tragédia que culminou com a morte de sete adolescentes no órgão público do governo estadual denominado “complexo de defesa da cidadania”. As mortes ocorreram por queimaduras dentro de cela fechada do citado local.
O Ministério Público Federal requisitou a abertura de inquérito policial pela Policia Federal para apuração dos fatos, uma vez que era evidente a necessidade de medidas de apuração por órgãos isentos e distantes do Sistema Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (exatamente em face mesmo dos indícios evidentes de omissão do poder público estadual, no que poderia ter evitado ou minimizado a citada tragédia).
A Polícia Federal apurou os fatos, de forma paralela, porém em parceria com a investigação igualmente séria realizada pela Secretaria de Segurança Pública, cujo relatório e cópia integral do inquérito se encontra anexado nestes autos.
O laudo de Exame Pericial em local do incêndio n. 151/2004 apontou que “no local examinado ocorreu um incêndio artificial de origem pessoal intencional (quando procede de ação proposital do homem) provocado por fogo direto ateado (queima de colchões), com retardo no combate ao fogo, devido à ineficiência dos equipamentos de extintores presentes no local (atrasados na recarga, tendo resultado em danos materiais, lesões corporais e morte violenta). O único menor sobrevivente (WASHINGTON JAIRO SOUSA SANTOS) declara que quem ateou fogo nos colchões foi o menor OTÁVIO, com fósforos e cigarros que haviam sido recebidos no mesmo dia da tragédia pelo menor Anderson, que por sua vez os recebeu da sua própria mãe em visita naquele triste dia.
Neste ponto, já se têm esclarecidas pelas Polícias Federal e Estadual as causas direta (colocação de fogo) e indireta (ausência de mecanismos de extintores de incêndio com um mínimo de eficiência) que determinaram o resultado da tragédia.
Porém, o Ministério Público Federal buscou neste inquérito exatamente aprofundar o nível de responsabilidade, a fim de esclarecer todas as concausas que contribuíram para aquela tragédia.
Sobre este último ponto (da responsabilidade do poder público) as Polícias Federal e Estadual também compartilham do mesmo entendimento, qual seja, de que houve omissão do poder público estadual na prestação dos serviços de proteção e defesa da criança e do adolescente. O Poder Judiciário Estadual responsável pela tutela jurisdicional a respeito da criança e do adolescente fez juntar cópia de vários documentos demonstrando o seu esforço em conseguir junto ao Poder Público Estadual a mínima estrutura para o funcionamento a contento do Complexo de Defesa da Cidadania, porém seu esforço foi em vão. Prova disso são os expedientes juntados às fls. 141/142, 143/144, 148, 150/151,152/153 e 159/160 dos autos do Apenso I deste inquérito policial. Todos os documentos são cópias de ofícios do Juiz de Direito Titular da 2a Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Teresina/PI dirigidos à titular da Secretaria Estadual de Assistência Social e Cidadania - Sra. ROSÂNGELA MARIA SOBRINHO SOUSA, alertando sempre da omissão do pode público estadual no trato da questão da criança e do adolescente, já praticamente antevendo que uma tragédia poderia ocorrer no sistema estadual de proteção e defesa da criança e do adolescente, como de fato ocorreu.
Deixou bem claro o referido Juízo da Infância e da Juventude de quem seria a responsabilidade por eventual tragédia no trato da defesa da criança e do adolescente: a responsabilidade não poderia ser outra senão do próprio Estado por omissão na prestação de sua obrigação constitucional tão deficientemente tratada. Para não deixar dúvidas, transcrevo adiante trechos de expedientes do juízo da infância e da juventude, demonstrando a omissão do poder público estadual. O expediente de fls. 143/144, é direto e mostra a omissão do Estado exatamente no órgão onde ocorreu a tragédia (no Complexo de Defesa da Cidadania), veja-se: “Sra. Secretária da SASC, Como é de V. elevado conhecimento, no cumprimento do inciso V, do Art. 88 do ECA, este Juízo funciona nas dependências do “CDC”, pelo que este juiz acompanha pessoalmente o funcionamento daquele espaço de ação integrada. Durante ocorrência havida nas dependências deste “CDC”, em 24.08.03, quando adolescentes recolhidos nas dependências deste “CDC”, em grave distúrbio - obrigando este Juiz, por omissão do Estado na manutenção de programas suficientes e adequados para atendimento aos adolescentes a quem se atribui atos infracionais, a encaminhá-los emergencialmente e extraordinariamente à Casa de Custódia de Teresina - este Juiz pessoalmente verificou limitações e deficiências inaceitáveis.” Já em 17 de fevereiro de 2004, o juiz da infância e da adolescência novamente relatava a omissão do poder público no trata da questão relacionada à criança e adolescente, mais uma vez no ‘Complexo de Defesa da Cidadania - CDC”, conforme transcrevo adiante: “Sra. Secretária da SASC, Em visita pessoal às dependências destinadas ao alojamento de adolescentes no “Complexo de Defesa da Cidadania”, constatei não haver ainda a SASC procedido às alterações estruturais já determinadas por este Juízo. Estranhando o inaceitável retardo ante determinação judicial para cumprimento da qual inclusive o Sr. Engenheiro desta SASC procedeu visita de verificação às dependências em apreço, NOTIFICO V.EXA., do prazo de 48 horas para dar início às obras que sanem a falha inaceitável porque, além de desobediência à ordem judicial, configura desrespeito às necessárias condições de salubridade e ocupação humana dos alojamentos referidos. São providências de Caráter imediato: ...3 - Manutenção de material de primeiros socorros dentro do que especificam as normas de saúde para estabelecimentos como o Complexo CDC” (fls. 150/151 dos autos)”. Novamente o Juízo da Infância e da Adolescência menciona a omissão e ineficiência da Secretaria de Assistência Social e Cidadania na Proteção da Criança e do Adolescente, conforme se vê no expediente de fls. 157/158, transcrito adiante: "Sra. Secretária, Este Juiz tem constatado pessoalmente que os programas responsáveis pelo atendimento integral a adolescentes incursos em ato infracional têm deixado de dar cumprimento às providências de ordem operacional, tais como deslocamento de adolescentes de uma unidade para outra, entrega de documentação. Isto quase sempre por não se dispor de veículos e outros equipamentos imprescindíveis ao funcionamento correio dos programas que devem integrar o sistema sócio-educativo.
A observação dos fatos tem nos feito ver que esta SASC tem deixado de suprir regularmente as necessidades estruturais dos programas referidos, do que se depreende não haver previsão administrativo-financeira para a manutenção dos equipamentos sociais básicos. Recentemente, determinação judicial de remanejamento de adolescentes que estavam provisoriamente recolhidos à “Casa de Custódia” deixou de ser cumprida por ausência de veículo no plantão interinstitucional do “CDC”. As consequências desta inaceitável falha institucional da SASC, configura violação dos direitos dos adolescentes, descumprimento da lei e desobediência à ordem judicial” Vê-se que não é exagero afirmar, infelizmente, que o Sistema Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente estava falido antes e durante a tragédia de 08 de maio de 2004.
Não há justificativas para a negligência estatal para com a criança e o adolescente. Tanto assim que a própria Policia Civil promoveu o indiciamento da Secretária Estadual de Assistência Social.
Devidamente esclarecidas as causas direta e indireta da tragédia que ocorreu no Complexo de Defesa da Cidadania, e considerando que sob a ótica estritamente criminal a competência para o oferecimento de instauração de ação penal ou de arquivamento é da Justiça Estadual, requer este órgão ministerial a declinação de competência da Justiça Federal. sendo os presentes autos remetidos ao Ministério Público Estadual para que este tome as providências que julgar cabíveis perante a Justiça Estadual.

É o que se requer.

TRANVANVAN DA SILVA FEITOSA

Procurador da República __________________________________

PONTOS POLÊMICOS DO INQUÉRITO DA POLÍCIA CIVIL

1- Não constam dos autos do inquérito os dois documentos questionados no curso das investigações: o Termo de Interrogatório do suposto depoimento atribuído ao adolescente Mikhayl de Almeida Freitas e o depoimento de sua tia Maura Rejane Moreira Freitas, cuja a inexistência já havia sido denunciada.

2- Apesar de o Complexo de “Defesa” da Cidadania constituir-se num Plantão Interinstitucional composto pelo judiciário, ministério público, defensoria, segurança pública e assistência social, só constam dos autos, como subsídio para o indiciamento indireto das autoridades, documentos encaminhados pelo Juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude, manifestando preocupação quanto às condições inadequadas daquela Instituição.

3- A insistente tentativa de reduzir a responsabilidade do poder público, apresentando e defendendo teses que incriminam mães: primeiro, a do Otávio; depois a de Wanderson.

4- O indiciamento de um único soldado, dentre os quatorze servidores de plantão naquela noite.

5- O indiciamento-fachada das autoridades envolvidas, tais como, o da Secretária de Assistência Social e Cidadania, que continua investida no cargo, trabalhando normalmente. Considera-se que o trabalho investigativo deveria fundamentalmente ter se voltado a responder às seguintes indagações: . Onde se encontravam as pessoas responsáveis pela segurança externa às celas e interna ao Complexo na hora em que teve início o incêndio? A cerca de três metros da cela que deu cenário à tragédia, existe um Posto com balcão onde devem permanecer 24 horas as pessoas designadas para essa tarefa. Por que não estavam lá? Se ali estavam, por que não prestaram socorro antes que o fogo tomasse proporções incontornáveis? . A estrutura daquele Complexo é adequada para cumprimento de sua função institucional, condizente com as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e com as diretrizes do Programa Nacional dos Direitos Humanos? . Qual era a situação processual de cada uma das vítimas? Identificada a situação processual de cada um, pergunta-se: todos os órgãos e autoridades estavam em dia com suas obrigações legais e administrativas? Possíveis falhas devidamente comprovadas, se sanadas no tempo certo, teriam evitado a tragédia e suas conseqüências? . No caso particular de Mikhayl, sua apreensão deu-se às 9:50h do sábado, dia 08.05.2004, conforme certidão de ocorrência em anexo, fornecida posteriormente mediante requerimento da família, que naquele dia não tomou conhecimento da apreensão. Não foi sequer instaurado o Procedimento Administrativo para apurar o ATO INFRACIONAL supostamente praticado por ele. O ECA, em seu artigo 231, determina que a comunicação seja imediata, portanto não comportando qualquer dilatação temporal. Logo, faz-se necessário saber: a) Quem o recebeu naquele Complexo e procedeu ao seu recolhimento? b) Por que não contactou a família, conforme determina a Lei? c) Houve a motivação legal de sua apreensão? . O atendimento e a assistência hospitalares concedidos aos adolescentes pelo Estado através do Hospital Getúlio Vargas foram os necessários e suficientes para salvar aquelas vidas?

QUESTIONAMENTOS E DENÚNCIAS :

O surgimento de um Termo de Interrogatório, contendo um misterioso depoimento de Mikhayl, supostamente tomado pela equipe de policiais em 10/05, quando este se encontrava na U.T.I. do Hospital São Marcos e que resultou em denúncias formalizadas pela família junto ao Procurador Geral da República, Procurador Geral de Justiça e Governador do Estado, requerendo inclusive o afastamento das responsáveis pelo inquérito, não consta dos autos e foi convertido em um Termo de Informações assinado pela promotora Vera Lúcia Santos, a mesma que responde pelo Complexo de Defesa da Cidadania e que esteve à frente das investigações. Nesse Termo de Informações, a promotora apresenta um relato de uma conversa que teria mantido com Mikhayl às vésperas de sua morte, cujo conteúdo é o mesmo do documento anteriormente atribuído a ele, ou seja, a confirmação da tese final do relatório que incrimina o adolescente falecido Otávio Cardoso, a mãe de Wanderson e o policial militar.

Consta do TERMO atribuído a Mikhyl, que 01(um) dos menores presos naquela cela teria recebido uma visita; que tal visita lhe trouxera uma carteira de cigarros e uma caixa de fósforo; que outro menor, de nome OTÁVIO tomara para si aquela caixa de fósforo anunciando que atearia fogo nos colchões; que por volta das 21:00h o mesmo praticara o anunciado, colocando o colchão encostado da grade e acrescentando mais outros; que não havia nenhum policial nos arredores; que gritaram bastante por socorro; por fim que percebera os policiais usando os extintores. (Termo apresentado à família para que o assinasse validando-o, em 07 e 08/06/2004).

A assinatura da família era o requisito desejado pela equipe de policiais para poder fazê-lo constar como peça probatória do Inquérito. O grave dessa situação, é que as supostas declarações de Mikhayl teriam sido tomadas em 10/05/2004 na UTI do Hospital, sem conhecimento e autorização da família do adolescente, em condições que caracterizam fortes violações de direitos, tanto do enfermo no seu leito de morte, quanto da família que,a partir da entrada deste na UTI do Hospital São Marcos, por volta das 21:00h do dia 09-05-2004, não pôde mais manter qualquer contato com o mesmo. Somente na terça-feira (11-05), à tarde o Hospital facultou à família que o visse pelo vidro da UTI. Sem contato direto e “entubado”, o adolescente não pode mais falar com seus familiares.

É de causar estranheza uma equipe, composta de autoridades e mais testemunhas, tenha adentrado a uma UTI, cujo acesso era vedado inclusive à família, lá permanecido o tempo necessário para interrogá-lo e ouvi-lo em detalhes, fazendo ainda o registro de suas declarações. Parece inadequado tal procedimento e, por demais, incoerente com o tratamento dispensado aos familiares. Durante as cerca de 20 horas em que permaneceu com acompanhamento dos familiares, Mikhayl não declinou nome de quem quer que seja como responsável pela tragédia, limitando-se a dizer que estava dormindo quando iniciara o incêndio, tendo acordado com a quentura das chamas.

Assim sendo, são muito díspares os registros feitos pela Delegada do menor, Drª Laura, e aquilo que a família ouvira do adolescente naquele momento difícil. Ressalve-se que, até por recomendação dos profissionais da saúde, a família teve o cuidado de poupá-lo de muitas perguntas diante da grave situação em que se encontrava.

É muito estranho que autoridades se aproveitem do estado moribundo de um adolescente (relativamente incapaz) para “colherem” informações para instruir um Inquérito Policial, sem a presença de seus genitores ou responsável! Estranho que autoridades pretendam que uma pessoa incapacitada e à beira da morte num leito de hospital, expresse-se ou fale sobre uma situação, justamente para delatar um infeliz companheiro de cela!

O Coordenador do Serviço de Terapia Intensiva do Hospital São Marcos, Dr. Jayro Tadeu Paiva de Vasconcelos, manifestou-se quanto à tomada de depoimento e às suas condições físicas e psicológicas, através de relatório que diz:

Teresina, 17 de junho de 2004

Prezados Senhores,

No dia 10/05/2004 ao passar visita médica, no período da tarde na UTI – 2 do Hospital São Marcos percebi e fui informado pela enfermeira e pela médica de plantão da presença de 04(quatro) pessoas para tomada de depoimento do Sr. Mikhayl de Almeida Freitas que estava internado no leito 06 daquela unidade, com grande área corporal queimada, em estado grave, evoluindo com insuficiência respiratória e episódios de confusão e agitação mentais, imediatamente desautorizei a presença das referidas pessoas, pois não havia condições clínicas para tomada de depoimento.

Não reputa que seja de boa conduta ética, ou que tenha valor científico e legal, declarações supostamente colhidas naquelas circunstâncias de vida e saúde de Mikhayl, apontando um responsável já morto para uma ação de efeitos tão catastróficos. Quanto ao depoimento da Sra. Maura Rejane Moreira Freitas, este não aparece nos autos, porque de fato ele não existe. A família já havia denunciado que, apesar de, trinta dias após a tragédia, ela ter sido intimada a depor, ao comparecer no local, em horário e data estabelecidos, as delegadas e a promotora não tomaram seu depoimento, tendo apenas persuadido-a a assinar o suposto depoimento de seu sobrinho, validando-o como se o tivesse presenciado. Ao negar-se a assiná-lo, a tia do adolescente foi dispensada. Motivo pelo qual, quando da elaboração do relatório final do inquérito, as delegadas fizeram apenas uma referência a ele, justificando sua ausência, com alegação de um suposto extravio e acrescentando que, se o juiz julgar necessário, poderá solicitar cópia da 2ª via que se encontra em poder da depoente. Pergunta-se: Como se justificaria o desaparecimento misterioso de um documento tão importante, que teria sido produzido ao longo de um trabalho tão “criterioso” e “sério”, e cuja inexistência já havia sido denunciada? Como assimilar a idéia de que um trabalho de tamanha importância, em plena era da informática, não tenha sido registrado na memória do computador nem salvo em disquete?

Vale ressaltar que todos os demais depoimentos constantes dos autos foram digitados em computador e impressos em 03(três) vias, sendo entregue ao depoente apenas uma cópia xérox.

Vale destacar que as denúncias apresentadas às autoridades pela família do adolescente Mikhayl de Almeida Freitas foram ignoradas, colocando em descrédito o trabalho realizado. Uma outra questão polêmica acerca desse inquérito, é que, apesar de o Complexo de “Defesa” da Cidadania constituir-se num Plantão Interinstitucional composto pelo judiciário, ministério público, defensoria, segurança pública e assistência social, destinado ao atendimento inicial do adolescente em conflito com a lei (Art. 88, inciso V do E.C.A.), só constam dos autos, como subsídio para o indiciamento das autoridades, documentos encaminhados pelo Juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude, como representante do Poder Judiciário, encaminhados à Secretária Estadual de Assistência Social e Cidadania, determinando que fossem tomadas providências no sentido de garantir aos servidores daquele Complexo condições adequadas de trabalho. Nada constando por parte do Ministério Público, representado naquela instituição pela Promotora da 2ª Vara da Infância e Juventude, Vera Lúcia da Silva Santos. Ressalte-se que ela possui poderes inclusive para pedir a interdição daquele órgão, em caso de irregularidade. Logo, sua atuação também deveria ser avaliada no curso das investigações.

É importante destacar que ela, apesar de ter acompanhado todo o trabalho investigativo, não juntou nenhum documento provando ser diligente em seu desempenho profissional. Razão para que fosse designado outro promotor para acompanhar o inquérito, evitando a parcialidade na condução deste.

Acerca da Defensoria Pública, outro órgão que deveria ter sua atuação avaliada nesse processo, nada consta dos autos. Ela constitui-se num dos pontos fracos dessa instituição, alvo de muitas críticas e denúncias anteriores à tragédia, pois apesar de oficialmente, segundo informações à época, contar com um Defensor designado no seu quadro de profissionais, na prática registrava-se apenas uma tímida atuação de um estagiário. Registre-se que, após o incêndio de 08 de maio, os defensores concursados que seriam distribuídos em vários municípios do Estado do Piauí, permaneceram em Teresina, sendo que dois desses foram designados para trabalhar na defesa de crianças e adolescentes.

Quanto ao indiciamento de um único soldado, dentre os quatorze servidores de plantão naquela noite, bem como à constatação de que não houve negligência nem omissão de socorro, são questões que caracterizam a falta de compromisso com a verdade dos fatos ali ocorridos.

O indiciamento da Secretária de Assistência Social e Cidadania, que continuou investida no cargo, trabalhando normalmente, sendo posteriormente, exonerada e nomeada Coordenadora Geral do Programa Fome Zero, bem como o fato de sua defesa ter sido apresentada pelo então Procurador Geral do Estado, Dr. Antônio Ivan e Silva, são indícios de manobras realizadas para reduzir a responsabilidade do Estado sobre essa tragédia, uma vez que a função do Ministério Público é justamente aprofundar a investigação acerca da irregularidade da apreensão dos vitimados, os quais se encontravam privados da liberdade, em local inadequado, há vários dias e, na sua maioria, sem a situação processual definida.

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O Complexo de Defesa da Cidadania
Através de estudos realizados e da análise dos autos do Inquérito da Polícia Civil sobre o incêndio no Complexo de Defesa da Cidadania, se pode constatar que os adolescentes em conflito com a Lei, que passam por aquele plantão interinstitucional, em sua grande maioria, são oriundos de famílias pobres, frutos de uma sociedade capitalista e para os quais são negados todos os direitos inerentes à dignidade humana como: os direitos à vida com qualidade, à saúde, à educação, à moradia, ao lazer, ao meio ambiente saudável, ao saneamento básico, à segurança, ao trabalho e à diversidade cultural. Falta-lhes tudo, apresentando-se apenas como alternativa de vida o engajamento na criminalidade, como o comércio ilegal de armas e drogas, o crime organizado e seqüestros.
O funcionamento do Complexo de Defesa da Cidadania, situado na zona sul de Teresina, teoricamente, encontra-se estruturado conforme previsto no ECA. Na prática, aquela instituição contraria a Lei, uma vez que apresenta irregularidades que vão desde a estrutura física inadequada do prédio até flagrante despreparo dos recursos humanos utilizados.
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Conclusão
A tragédia do 08 de maio e outras tantas que têm ocorrido no Brasil são indícios da banalização da violência institucionalizada, fenômeno que vem vitimizando centenas de jovens mantidos sob a tutela do Estado.
A ausência/deficiência/desarticulação das políticas públicas nas instituições de atendimento inicial e de internação de jovens em conflito com a lei tem causado sérios prejuízos à sociedade, pois o Estado tem recolhido adolescentes em risco para depositar em instituições inadequadas para as finalidades previstas no E.C.A- Estatuto da Criança e do Adolescente no artigo 123 “A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração”, bem como no artigo 185 “A internação, decretada ou mantida pela autoridade judiciária, não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional.”
Conforme já havia sido denunciado, a corda arrebentou do lado mais fraco. O indiciamento da mãe de um dos adolescentes mortos é prova concreta disso. Primeiro tentaram incriminar a mãe do Otávio, como ela provou que mora no estado do Maranhão e que no dia do incêndio nem em Teresina se encontrava, transferiram a acusação para a mãe de Wanderson. É bom frisar que o Otávio foi a vítima escolhida porque já chegou ao Complexo de Defesa da Cidadania, rotulado de “incendiário”, por causa de um incêndio que houve na Casa de Punaré, instituição mantida pela Prefeitura de Teresina e pela Ação Social Arquediocesana, onde ele esteve internado anteriormente.
Quanto à mãe de Wanderson, ela foi escolhida por tratar-se de uma pessoa bastante humilde, empregada doméstica, que visitava quase que diariamente seu filho e tem dificuldade de se expressar, tanto que chegou a passar mal ao prestar depoimento, sentindo-se pressionada pelas delegadas. As denúncias formalizadas, apontando indícios de irregularidades na condução do trabalho investigativo e no processo de produção de provas, bem como, o pedido de afastamento das delegadas não foram suficientes para que as autoridades competentes tomassem as providências cabíveis, a fim de evitar a fabricação de um resultado que já era objeto de preocupação por parte das famílias das vítimas e das entidades que têm acompanhado esse caso.
Supõe-se que a “experiente” e “dedicada” equipe de policiais designada para compor a Comissão de Inquérito, ao tipificar “homicídio culposo” sabiam que tal crime não admite partícipes, portanto, o Parecer Ministerial emitido pelo Procurador Geral de Justiça do Estado, inocentando a Secretária Rosângela Sousa, já era previsível, tanto que as famílias se anteciparam ao resultado e formularam denúncias às autoridades competentes, bem como à sociedade em geral através da imprensa.
Ressalte-se que a transparência apregoada pelo Governador Wellington Dias e sua equipe de assessores, por ocasião da tragédia, conclamando a sociedade organizada a acompanhar as investigações, de fato não passou dos discursos estampados nas páginas dos jornais. O que se deu, na prática, foi a omissão e o descaso das autoridades para com tamanha tragédia, refletindo também o tratamento destinado à problemática da criança e do adolescente carente em nosso Estado.
Há 04 anos da tragédia e da conclusão dos inquéritos Policiais, nenhuma justificativa foi dada para as famílias das vítimas. Apesar de o Governador Wllington Dias haver afirmado, à época, que teria tomado as providências para a instauração de processo administrativo, até hoje, ninguém ouviu falar acerca do andamento de tal procedimento e, muito menos, do seu resultado.
Além disso, nada mudou na área da Infância e Juventude em nosso Estado. O Complexo de "Defesa" da Cidadania permanece com a mesma estrutura física, com registro de superlotação, os órgãos que o compõem continuam desarticulados, emperrando a tramitação dos processos e mantendo dezenas de adolescentes nos "depósitos públicos".
Os "Centros de Internação" apresentam lotação acima da capacidade e estrutura inadequada à recuperação e re-socialização dos adolescentes em conflito com a lei. E, o que é pior, em total desrespeito à Constituição Federal e ao E.C.A., adolescentes privados de liberdade, cumprindo pena na Casa de Albergados, Casa de Custódia e Penitenciária Irmão Guido, instituições exclusivas para adultos, ficando à mercê da boa vontade dos servidores da Secretaria de Justiça, lotados ali, que, por sua vez, ficam numa situação bastante complicada, pois fica caracterizada uma transferência de responsabilidade entre os órgãos, já que a Secretaria de Assistência Social e Cidadania – SASC é a responsável pela assistência à esse jovens. Constatações feitas denunciam que a precariedade do atendimento oferecido pelo Complexo de Defesa da Cidadania deve-se, em grande parte, à:
1- falta de engajamento formal e prático das várias instituições que o compõem no sentido de garantir um diagnóstico real da situação de cada criança e\ou adolescente até lá conduzido;
2- falta de integração operacional com os demais órgãos que implementam as políticas públicas no Estado, impossibilitando o encaminhamento de cada caso, seja junto aos órgãos da Educação (inserção e permanência na escola); às instituições de Saúde (tratamento especializado, especialmente nos casos de envolvimento com drogas); aos programas de Assistência Social e de Geração de Renda (garantia da sobrevivência e profissionalização, inclusive familiar).
3- estrutura inadequada do prédio (modelo de prisão) que não dispõe de espaços apropriados para reuniões, entrevistas, oficinas pedagógicas e um conjunto de atividades que possibilitem o bem-estar físico e psicológico daqueles que por ali passam e permanecem durante o tempo necessário ao diagnóstico e devido encaminhamento dos casos.
4- carência de uma política de qualificação dos recursos humanos permanente a fim de garantir que servidores lotados naquele Plantão, além da formação mínima exigida para o exercício da função, possuam também conhecimentos específicos para lidar com seres em desenvolvimento, que carregam consigo todo um histórico de frustrações pessoais, de violências sofridas e de violações de seus direitos mais elementares.
A composição do Plantão Interinstitucional, sediado no Complexo de Defesa da Cidadania, por si só já o credencia a garantir àqueles que são para lá conduzidos, integridade física e moral, bem como um conjunto de direitos considerados de primeira e segunda geração. Mudanças, entretanto, devem ser operadas para que o mesmo se coloque na condição de articulador do acesso de crianças e adolescentes em situação de risco aos direitos sociais e econômicos de que são privados, construindo a partir dali uma teia de relações entre os órgãos que o compõem, as entidades da sociedade civil que militam na defesa dos direitos humanos, as famílias e os demais órgãos promotores das políticas públicas. O Ministério Público Federal, apesar de concluir que houve omissão e negligência do poder público estadual “na Proteção da Criança e do Adolescente” e identificar “que o Sistema Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente estava falido antes e durante a tragédia de 08 de maio de 2004”, através de Inquérito realizado pela Polícia Federal, remete à Justiça Estadual a competência para o oferecimento de instauração de ação penal ou de arquivamento, requerendo portanto a declinação de competência da Justiça Federal. Requerendo que os autos sejam remetidos ao Ministério Público Estadual para que este tome as providências que julgar cabíveis perante a Justiça Estadual. Ressalte-se também que somente após a conclusão do inquérito instaurado pela Policia Federal, a Dra. Rosangela Sousa foi afastada da Secretaria de Assistência Social e Cidadania para assumir a Coordenacao Nacional do Programa FOME ZERO.
Enquanto isso... "a gente vai levando, a gente vai levando."

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